quarta-feira, 30 de março de 2011

Ode à Pátria


Hugh,
Sei que me queres ouvir, mas para quê?
Nunca me pediste opinião, o que queres agora?
Que fale, que diga, que repita tudo quanto te tenho dito
E nada ouves porque não sou ninguém?
Sou teu … Nasci aqui! Pertenço-te!
Mas só sirvo para te pagar, para te servir, para te limpar a merda!
Sim … a merda que fazes com tudo o que te dou e dela tentar tirar-te!

Só pedes! Pedes, pedes e não dás!
Porquê?! Porque sou teu e achas que nada mereço?
Porque sou teu e nunca te reneguei?
Se me renegas constantemente, se me perdes o respeito
E me atiras à cara que tudo o que faço não serve, é em vão,
É inútil, é uma mísera migalha de um pão de tonelada que precisas,
Mas achas que nunca to poderei dar!

Sabes que mais?
Às vezes nem sei se te quero!
Devo é ter vergonha de dizer que não!

Olho para o lado e não vejo nada!
Às vezes quando a ti recorro sabes o que acho que sinto?
Nunca fui a nenhuma, mas deve ser a mesma sensação!
Parece que vou às putas! Tenho que pagar por tudo
E nem um caralho dum orgasmo consigo ter em condições!

Sabes porquê?
Até sabes, mas não queres ver!

Porque tal como essas gajas não fazes nada por amor!
Levas tudo o que podes, pensas que podes fazer tudo
- e até fazes – e nada deixas para ninguém!

Ah! Já me esquecia! Tens dívidas para com os teus chulos!
Os chulos dos estrangeiros que te fodem a torto e a direito
E tu pagas tudo o que te pedem … Porque … quem te paga sou eu!


Sabes? Nunca experimentei tal sentimento,
Mas deve ser muito mau amar uma puta!
Todos a fodem, até o chulo que lhe come tudo e nós,
Impávidos e serenos, continuamos a sustentar tais vícios
E sujeitamo-nos a ver!

Que Pátria a minha esta que a tudo se sujeita!
Que Pátria a minha esta que anda perdida!
Que travessia tal no deserto!



Apesar de tudo …

Amo-te meu Portugal!




Ricardo Matos

terça-feira, 29 de março de 2011

Um adeus português


"Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti."

Alexandre O'Neill

terça-feira, 22 de março de 2011

Tarde


Quando o tempo se torna nosso amigo
A vida encara-me e então me sorri
E então eu encaro-me e ando comigo,
Não quero saber quem anda por aí!

Olho o sol, que me está ele a dizer?
“Faz como eu que a mim próprio me ilumino
E, contente, irás sempre tu saber
Qual será deveras o teu caminho!”

E na tempestade – então me pergunto –
Como é que me irei iluminar?
“Passa as nuvens e p’ra de mim vem junto

E no teu topo te irás encontrar!”
No seu lugar o sol se sabe pôr,
Pois por si próprio é eterno o seu amor!



Ricardo Matos

domingo, 20 de março de 2011

Poema em linha reta


"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."




Álvaro de Campos

sábado, 19 de março de 2011

Preterido


Foi da maneira como és que te vi,
Doce e delicada no teu falar.
“O meu desejo”, pensei, “já cumpri!”
Deu resultado tanto procurar.

Mas tu as tuas costas me voltaste,
Vejo-me outra vez sem norte, sem rumo,
Mas muito descontraída ficaste
Ao sol da tarde, bebendo o teu sumo.

Voltas dou para me reencontrar,
Mas é de mim que eu devo andar escondido.
Não sei até onde isto irá parar,

Estou farto de ser sempre preterido!
Diz-me mundo o que deverei fazer
Para um dia ser eu a ter prazer!



Ricardo Matos